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Opinião – Política fiscal em sua hora da verdade

postado em 07/12/2009 0:00 / atualizado em 07/12/2009 0:00

O superávit fiscal primário, acumulado em doze meses, despencou para 1% do Produto Interno Bruto (PIB) em outubro de 2009. Um ano antes, esse indicador estava na confortável casa dos 4,3% do PIB. Mesmo considerando a hipótese de um resultado de 1,6% do PIB para o final deste ano, parece não haver dúvida quanto à piora sensível das contas públicas brasileiras nos últimos meses. A grande questão é saber se tal deterioração é fenômeno transitório, resultado direto da crise, ou se estamos diante de um problema mais grave de abandono da responsabilidade que caracterizou a política fiscal na última década.

A resposta a essa questão será dada no decorrer de 2010. A perspectiva de crescimento robusto de 5% do PIB brasileiro afasta a possibilidade de se rotular de "anticíclica" uma política fiscal que apresente os mesmos resultados negativos que foram observados nos últimos meses. Assim, uma repetição do pífio desempenho das contas públicas despertaria fortes suspeitas de ruptura com a política de responsabilidade fiscal, que já não poderia ser mais escondida sob o manto da mera reação à crise.

Porém, até aqui os sinais têm sido negativos. A forte expansão dos gastos de custeio em 2009 e a proliferação errática de isenções tributárias com vigência até 2010, combinadas com a crescente utilização de uma contabilidade criativa nas contas públicas, parecem indicar que a recuperação do superávit primário em 2010 será insuficiente para levar o quadro fiscal de volta à mesma situação confortável do período pré-crise. Com efeito, a própria meta estipulada pelo governo para 2010 indica um "esforço" primário efetivo de apenas 2,5% do PIB, muito aquém, portanto, dos resultados obtidos antes da crise.

O cumprimento dessa modesta meta em 2010 estará associado basicamente à recuperação cíclica da arrecadação tributária, graças ao maior crescimento da economia. Com relação às despesas, tudo indica que seguirão apresentando forte crescimento real, notadamente os gastos com pessoal e com benefícios previdenciários. Assim, a qualidade do gasto público seguirá se deteriorando, com os investimentos numa posição secundária vis-à-vis as despesas de custeio, apesar de todo o rufar de tambores em relação ao PAC.

Muito embora os principais indicadores de solvência – dívida líquida/PIB e dívida bruta/PIB – devam fechar o ano próximo em patamares ainda confortáveis e superiores aos percentuais observados em 2009, o desempenho das contas públicas em 2010 reforçará a ideia de mudança qualitativa para pior da política fiscal, com o abandono da estratégia de obtenção de superávits primários na faixa entre os 3% e os 4% do PIB que caracterizou a última década de política econômica.

Pode-se argumentar que superávits dessa magnitude não são mais necessários, tendo em vista a queda verificada nos custos reais de financiamento da dívida pública nos últimos anos. Se assim for, os gastos primários adicionais estariam apenas "substituindo" uma menor despesa com o pagamento dos juros da dívida, sem que houvesse deterioração dos indicadores de sustentabilidade do endividamento público.

Porém, trata-se de um argumento equivocado, ainda que se concorde com a tese da queda sustentada dos custos do financiamento da dívida pública. Ao contrário, caso se confirme nos próximos anos a tendência de menores superávits primários, serão múltiplas as consequências negativas sobre a economia brasileira.

Em primeiro lugar, é necessário considerar que o Brasil ainda exibe pelo menos dois indicadores que são pontos "fora da curva" em relação a economias semelhantes: a carga tributária e os juros reais elevados. Tanto um quanto o outro oneram as empresas brasileiras e se constituem em fatores inibidores do crescimento econômico. Desse modo, a economia com o pagamento de juros da dívida deveria idealmente ser empregado na própria redução do endividamento público ou na diminuição da carga tributária. Ao se decidir pela elevação da despesa primária, o governo condena as empresas brasileiras a conviveram com um ambiente macroeconômico mais inóspito e que não favorece o investimento privado.

Em segundo lugar, não devem ser ignoradas a rigidez estrutural das contas públicas e a necessidade de se conter o crescimento das despesas de custeio. Por razões demográficas, o déficit da previdência social tende a crescer inexoravelmente nos próximos anos, caso não haja uma profunda reforma. Do mesmo modo, é também inexorável o crescimento dos gastos com saúde. Dessa maneira, considerando essas tendências, seria prudente controlar a elevação dos gastos em outras rubricas de custeio, particularmente nas despesas com pessoal. Ao patrocinar, como fez em 2009, uma grande expansão dos gastos primários, o governo dificulta a gestão fiscal no futuro e aumenta os riscos de descontrole nas finanças públicas.

Em terceiro, deve-se notar que o Brasil padece de insuficiente taxa de poupança privada, o que demanda a existência de um setor público que contribua positivamente na formação da poupança doméstica, a fim de reduzir a dependência de poupança externa. Embora a importação de poupança, via déficits nas contas correntes, não seja um mal em si, o fortalecimento da poupança doméstica ajuda a proteger o país em situações de súbita redução da liquidez externa, o que tenderia a reduzir a volatilidade do produto e do emprego. Lastimavelmente, a opção pela redução do superávit primário via elevação dos gastos de custeio ignora completamente esse fato. Melhor teria sido, obviamente, elevar os gastos de investimento, mantendo sob controle as despesas de custeio.

Listamos acima apenas alguns dos problemas que poderão resultar da opção seguida pelo governo em 2009 e que provavelmente se repetirá no ano vindouro. Menores superávits primários, em consequência do aumento acelerado dos gastos de custeio, devem contribuir para o menor crescimento da economia nos próximos anos, ao contrário da crença hoje predominante na Esplanada dos Ministérios.

Fonte: Valor Econômico – Gustavo Loyola, doutor em economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central do Brasil, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo.

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